Cinco dias em Berlim permitiram desfazer o enigma desta cidade inscrita a ferro e fogo na memória cultural e política da minha geração. Não basta conhecer os últimos cem anos de História, ter seguido a passo a literatura, o cinema e a memorabilia gay. Relatos avulsos de um punhado de amigos ajudam, mas é preciso ver e compreender. Tentarei alinhavar alguns tópicos. Berlim é uma cidade civilizada, limpa e, até prova em contrário, segura. Os berlinenses são educados e prestáveis. Nas principais avenidas, os passeios são muito largos, embora a cidade, ao fim de 27 anos de reunificação, continue a ser um imenso estaleiro. As zonas de fronteira entre Leste e Oeste foram rapidamente reconstruídas e ocupadas — como por exemplo toda área que vai de Potsdamer Platz à Porta de Brandemburgo —, com edifícios assinados pela nata da arquitectura mundial, mas o interior dos bairros só agora está a ser afinado. Sirva de exemplo a majestosa Unter den Linden, o equivalente local dos Champs Élysées. Fiquei instalado no seu topo, no mítico Adlon Kempinski, a dois minutos da Porta de Brandemburgo. O hotel teve uma primeira vida, de 1907 a 1945, mas foi totalmente destruído pelos Aliados. Em 1997, oito anos após a queda do Muro, a família Kempinski reconstruiu o edifício. Por lá passou toda a gente (realeza e plebeus) que foi alguém: era o pouso preferido de Thomas Mann. Gostei francamente de lá ter ficado hospedado. O Adlon ocupa um terço de um quarteirão, estando o espaço que sobra ocupado, a Leste, pela embaixada britânica, e a oeste pela embaixada americana. No mesmo quarteirão, virado à Pariser Platz, resta ainda um nicho para o DZ Bank, obra de Frank Gehry, e para a simpática Akademie der Künste, de arte contemporânea. A rua da embaixada britânica, a Wilhelmstraße, está cortada ao trânsito automóvel entre Unter den Linden e Behrenstraße.
Berlim é uma cidade cara. Verdade que a variação de preços acompanha a passagem de um bairro para outro. Em Mitte, a zona envolvente do Adlon, tudo é caríssimo. Mas em Kreuzberg, zona multicultural frequentada por turistas com preocupações de natureza intelectual, a diferença é residual. Exemplo: em Mitte, uma bica custa três euros, num café de rua gerido por turcos antipáticos; em Kreuzberg custa 2,5 euros num café com WiFi gerido por rapazinhos louros de pele de pêssego e simpatia desarmante.
Quase todos os hotéis de prestígio estão concentrados em Unter den Linden, Behrenstraße e Friedrichstraße. As zonas comerciais por excelência são a Friedrichstraße e a Kurfürstendamm, vulgo Kudamm. Em ambas, a primeira no antigo Leste, a segunda no antigo sector americano, existem centros comerciais homéricos, além de lojas elegantes das marcas mais reputadas: Cartier, Prada, Kors, etc. Na Friedrichstraße ficam os concorridos Quartier 205-6-7. O 206 é obra do chinês Pei, o da pirâmide do Louvre. Atrás do Quartier 206 fica a Gendarmenmarkt, uma praça agradável, onde está o Konzerthaus, com a estátua de Schiller em frente, e as igrejas alemã e francesa. O Quartier 207 são as Galerias Lafayette, obra do francês Jean Nouvel. A Kudamm é magnífica: comércio, cafés, restaurantes, bares, hotéis populares, uma babilónia étnica. O Reinhard’s é o equivalente de Les Deux Magots. Tomar um chá ou um drink na esplanada é ver passar o mundo. Um chá custa entre 6 e 9 euros. Muitos rapazes morenos com a braguilha ostensivamente aberta, o que pressupõe outro tipo de comércio. O Reinhard’s fica na esquina da Fasanenstrasse, uma rua cheia de galerias de arte e pequenas lojas especializadas: arte déco, antiquários, livrarias, lentes zeiss, etc. Também ali está a discreta Literaturhaus, com uma boa livraria e um bonito jardim de rosas onde se pode almoçar.
Num dos topos da Kudamm, logo a seguir à Igreja da Memória, começa a Tauentzienstraße, onde fica o famoso KaDaWe, um Corte Inglês a multiplicar por dez. As secções gourmet do sexto piso são superlativas.
Para os amantes de arquitectura em altura, a Potsdamerplatz é o sítio ideal: arranha-céus tipo Manhattan, o Ritz-Carlton (o bar é excelente, mas dois whiskies custam 48 euros), o Sony Center com a sua gigantesca cúpula em aço, etc. A Filarmonia fica a dois passos, mas só reabre no próximo dia 26. E também a Gemäldegalerie, um bom museu com arte europeia dos séculos XV a XVIII. Uma das secções do Muro passava na Potsdamerplatz. Fazendo a pé o trajecto até à Porta de Brandemburgo, podem ver-se fotos de como era no antigamente. Fica aí o Memorial do Holocausto, também conhecido por Memorial aos Judeus Mortos da Europa, projectado por Peter Eisenman e inaugurado em 2005. Ocupa uma área de cerca de vinte mil metros quadrados. Há muitos memoriais em Berlim: aos homossexuais vítimas do regime nazi, aos deputados comunistas e socialistas assassinados a seguir ao incêndio do Reichstag, aos ciganos, etc. A memória é um ferrete.
No cimo do Bundestag fica a famosa cúpula em vidro de Norman Foster. Com pena, não fui visitar. As reservas pela Internet estavam bloqueadas para as próximas semanas e a possibilidade de fazer uma marcação in loco implicava ficar duas horas numa fila. Fora de questão.
Preferi ir para a ilha dos museus, que são cinco. A saber: o Altes Museum, com antiguidade grega, romana e etrusca; a Alte Nationalgalerie, com impressionismo alemão e francês; o Pergamon, com monumentos da antiguidade; o Neues Museum, recuperado recentemente por Chipperfield, onde podemos ver a cabeça de Nefertiti e réplicas do tesouro de Tróia que os russos levaram no fim da guerra; e o Bode Museum, com peças Alta Idade Média. Não fomos ao Pergamon porque era preciso comprar o ingresso (extra-passe) noutro contentor, e os 40 minutos gastos no contentor anterior chegaram e bastaram. A zona está toda em obras. Ao lado da ilha fica o Museu de História Alemã, muitíssimo bom. A parte menos interessante é uma escada em caracol desenhada pelo omnipresente Pei. Como digo, o museu é óptimo, mas a cafetaria não tem nada do que vem na lista. Nada. Não era por ter acabado, o empregado explicou que a lista tem anos e nunca foi mudada. No caminho para a ilha dos museus passei pela Dussmann, uma livraria magnífica em Friedrichstraße.
A grande decepção foi Alexanderplatz, uma espécie de Martim Moniz em dobro. A torre de televisão da antiga RDA fica quase colada. Nenhum interesse. Não houve tempo para visitar Prenzlauer Berg, antigo bairro proletário hoje ocupado por yuppies.
Acerca de restaurantes. As surpresas mais agradáveis foram a Ganymed Brasserie (Schiffbauerdamm, 5), consta que a preferida da senhora Merkel, o Borchardt (Französische Straße, 47), o Grosz (Kurfuerstendamm, 193) e o Pauly Saal (Auguststraße, 11). O Gendarmerie (Behrenstraße, 42) vale pela decoração e atmosfera cool. Aparentemente, tem o maior mural de madeira do mundo, pintura neo-expressionista de Jean-Yves Klein. O staff é simpático mas a comida é medíocre. A grande decepção foi a Enoiteca Il Calice (Walter Benjamin Platz, 4), onde tudo é pretensioso, a começar pela morada. Com excepção do Borchardt e do Grosz, que têm preços sensatos, os equivalentes dos restantes cobram em Lisboa menos 40%.
Continua. A imagem mostra a torre de televisão da antiga RDA. Clique.