Hoje na Sábado escrevo sobre Não se pode morar nos olhos de um gato — o título recupera um verso de O’Neill —, de Ana Margarida de Carvalho, autora que conseguiu a proeza de vencer o Grande Prémio de Romance e Novela da APE com o livro de estreia. Agora que publica o segundo, confirma-se a espessura de uma voz própria: «O filho não contrariou estes desdizeres da senilidade do pai…». O coro de regra sublinhará o timbre poético, embora me pareça mais avisado exarar o óbvio: a poética não tira nem acrescenta nada ao discurso de um romancista. Nesse particular, Ana Margarida de Carvalho se distingue dos amanuenses da ficção nacional. Não é fácil construir um romance assim. O relato de um naufrágio fictício exige o domínio seguro de todos os recursos discursivos, de forma a tornar a intriga plausível (sem ignorar as relações de contraste), dando vida própria aos personagens e seus fantasmas privados. Os flashbacks ajudam, decerto que sim, mas importa saber cerzir. E esse saber fazer está lá. A distopia chegou à nova ficção portuguesa? Quatro estrelas.