Hoje na Sábado escrevo sobre Lá Fora, de Pedro Mexia (n. 1972). Ao contrário da percepção geral, a crónica não é um género muito praticado entre nós. As pessoas confundem crónica com panfleto. Crónica é outra coisa. E Mexia é dos raros cultores avisados. Avisado no sentido de discreto e sensato, qualidades que não beliscam a ironia, a emoção e, sem pose, a costela de erudito. Lá Fora, a colectânea mais recente, reúne textos publicados entre 2006 e 2017. O texto mais antigo, A sauna da democracia, é o retrato nítido do Parlamento. Se tivesse sido escrito pelo Eça a pretexto do estado da Nação sob Hintze Ribeiro, não seria diferente do estado da Nação sob Sócrates. Em flashes breves, Mexia sinaliza os pares da República. Por exemplo: «Nuno Melo lembrava o entusiasmo de um magala que vai às meninas. […] Bernardino Soares nunca foi novo.» O livro é um conjunto de evocações, viagens, afinidades electivas. Por serem momentos decisivos da vida do autor, o texto sobre o encerramento do Tribunal da Boa Hora estabelece uma ponte com o da deslocalização do ‘Diário de Notícias’ para fora do edifício de Pardal Monteiro. No primeiro, Mexia evoca o tempo em que cumpria com tédio o estágio de advocacia; no segundo, os primeiros anos inteiramente dedicados à escrita. Em registo oposto, Uma noite no Lux é um dos textos melhor conseguidos do livro. O mito da discoteca do Cais da Pedra não resiste à mordacidade do noctívago acidental: os «moços com pulôveres amarelos e dentes a mais», os projectores de luz «comprados nuns saldos da Stasi», etc. Sobre a Figueira da Foz, um texto comovido: «Aqui aprendi tudo e não aconteceu nada.» Mas também Maputo, aliás Lourenço Marques, reconstruída a partir de «autobiografias de terceiros». Porque foi a cidade colonial que Mexia tentou ‘encontrar’. A paleta de temas inclui assuntos tão diferentes como a polémica em torno da estátua de Catarina de Bragança, em Nova Iorque; a relação de Leonard Cohen com Marianne Ihlen; o terror metódico de Auschwitz; os judeus sefarditas de Amesterdão; o massacre de Utoya, na Noruega; e outros que o autor expõe com igual brilho. Quatro estrelas. Publicou a Tinta da China.
Escrevo ainda sobre a reedição de Pátria Apátrida, do alemão W.G. Sebald (1944-2001), colectânea de ensaios que dá a medida do sucesso do autor num país que só o descobriu depois de morto. Figura incontrornável do academismo alemão, ensaísta brilhante, Sebald notabilizou-se junto do grande público por intermédio das suas reflexões sobre decandentismo, identidade e memória. Os ensaios reunidos em Pátria Apátrida detêm-se com especial minúcia numa plêiade de autores de língua alemã, casos de, entre outros, Franz Kafka, Hermann Broch, Peter Handke, Charles Sealsfield, Leopold Kompert e Joseph Roth. Em consequência, a questão judaica é um tema em pauta: Para leste, para oeste. Aporias das histórias de gueto em língua alemã é, dos textos coligidos, um dos mais aliciantes. Sebald faz close reading das obras e autores estudados, com remissões de vária ordem (sociológica, política, literária), mas a clareza da escrita, sempre fluente, induz a leitura. Vejamos, sobre O Castelo, de Kafka: «O fado da família Barnabas é uma sociologia sinóptica do povo judeu. Na sua consequência mais extrema, a conclusão é que a minoria oprimida…» Um leitor menos apetrechado, mas não fútil, procurará inteirar-se do quadro geral. E só tem a ganhar. Quatro estrelas. Publicou a Quetzal.