quinta-feira, 11 de agosto de 2016

MIGUEL CARDOSO


Hoje na Sábado escrevo sobre Víveres, de Miguel Cardoso (n. 1976). Desde Adília Lopes, que irrompeu na cena literária em 1985, nunca um poeta foi tão assertivo como Miguel Cardoso. Claro que o intervalo que vai de Adília até hoje não é um deserto: Rui Cóias, João Luís Barreto Guimarães, José Miguel Silva e António Carlos Cortez, aqui citados por ano de nascimento (seriam elegíveis mais um ou dois), “prolongaram”, cada um a seu modo, a melhor genealogia. O facto é que Cardoso, para além de prolongar, acrescenta. Víveres é um livro composto por seis sequências de poemas, fechando com um curioso Anexo Documental. Digamos que o autor traz com ele a respiração (se preferirem: a prosódia) dos que são obrigados a viver vários patamares abaixo daquele em que nasceram. Dito de outro modo, a mobilidade social de pernas para o ar — «e a promessa de minas d’oiro / é uma declaração de guerra» ou, de forma menos elíptica, «A fome volta e então como é difícil cantar […] O quanto custa imaginar entradas e saídas. / Cá andamos em voltas entre os nossos inimigos.» Imprescindível. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.

Escrevo ainda sobre a nova tradução de Crash, do britânico J. G. Ballard (1930-2009). Os primeiros anos da vida do autor deram origem a um filme célebre, O Império do Sol, que Spielberg realizou em 1987 após a adaptação que Tom Stoppard fez do romance homónimo. Nessa altura muita gente descobriu Ballard, que já então tinha publicado dez romances e catorze colectâneas de contos, núcleo a que pertencem algumas das suas obras mais consistentes. Mas o vasto mundo comoveu-se com a história do rapazinho à deriva sob o bombardeamento de Xangai. Foi ali que Ballard nasceu, porque era lá que os pais viviam e trabalhavam. Durante a ocupação japonesa, a família foi internada num campo de concentração até ao fim da guerra. O recorte autobiográfico de O Império do Sol faz dele o seu único romance convencional. Tudo o resto tem carácter distópico. Muitos títulos antecipam um universo caótico: Cataclismo Solar (1962) e Noites de Cocaína (1996), para dar exemplos com edição portuguesa, são obras emblemáticas. Agora, Crash (1973) regressou às livrarias. Nas palavras do autor, «o livro tem um papel político para além do seu conteúdo sexual, mas prefiro encarar Crash como o primeiro romance pornográfico baseado na tecnologia.» O foco central é a symphorophilia, ou seja, a parafilia que faz do desastre o objecto do prazer: assistir, planear, provocar, participar em. Neste caso, desastres com automóveis. Um dos personagens, Robert Vaughan, pretende atingir o clímax fazendo embater o seu carro, de frente, com o de Elizabeth Taylor. De certo modo, o plot é o corolário dos contos premonitórios reunidos em Disaster Area (1967), embora Crash seja mais revolvente. As descrições gráficas dos actos sexuais praticados no interior dos automóveis em andamento não seriam plausíveis sem o alto conseguimento da escrita. Nesse particular, Ballard é inatacável. Podemos não gostar daquele magma de olhos vazados, membros decepados, gases, sangue, vomitado, fezes e sémen («a vibração dos vidros do carro desencandeou o meu orgasmo»), mas não ficamos indiferentes. Sem surpresa, o filme que Cronenberg fez em 1996 a partir do livro tornou-se uma obra de culto. As feministas leram Crash como um exercício falocrata, e talvez tenham razão. Quatro estrelas. Publicou a Elsinore.

DISCURSO DIRECTO, 41

Constança Urbano de Sousa, ministra da Administração Interna, ontem na SIC.

«A Madeira não tem condições para utilizar meios aéreos no combate aos fogos. É preciso ter postos de abastecimento e isso não existe, mas é algo que o Governo Regional da Madeira poderá equacionar

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

DISCURSO DIRECTO, 40

Bárbara Bulhosa entrevistada hoje pelo Diário de Notícias. Excertos, sublinhados meus:

«[...] Esta nova geração de escritores não é assim tão extraordinária [...] Considero que os livros deveriam ser mais trabalhados antes de serem publicados e que os autores deveriam ter mais tempo para os rever e pensar. Um bom livro só o pode ser depois de muito maturado. [...] Está instalada uma máquina de fazer livros que tem muito pouco a ver com literatura. [...] Publico um livro quando acredito que tem leitores ou pertinência política ou social. Um editor é também um agente de divulgação cultural e política e quem disser o contrário não compreende o que faz. Vivemos em democracia e é preciso honrar a profissão. [...] Ao saírem 14 mil livros por ano, as livrarias estão sempre a receber novidades e a devolver os outros. O tempo de vida de um livro está em três semanas, um mês no máximo. [...] Não vejo grandes autores em Portugal que gostasse de editar. [...]»

Convém ler na íntegra. Ficamos a saber que a Tinta da China vai publicar Nelson Rodrigues, e nada me dá maior prazer.

BRASIL

Ontem, por 59 votos contra 21, o Senado deliberou passar Dilma de «suspensa de funções», como estava desde 12 de Maio, para «ré». A destituição definitiva deverá ocorrer no próximo dia 25.

UM NOVO CHIADO?


A situação que se vive no Funchal é dramática e faz lembrar o incêndio que arrasou o Chiado em Agosto de 1988. Até ao momento, três mortos confirmados e mil pessoas desalojadas de casas e hotéis. O centro histórico em chamas. Grande parte do Jardim Botânico destruído. António Costa alertou a UE e pediu ajuda à Rússia. A imagem de Gregório Cunha, para a Lusa, faz hoje a capa do Expresso, Público e Jornal de Notícias. Clique na imagem.

domingo, 7 de agosto de 2016

BERLIM, PARTE DOIS


No texto anterior faço um tour d’horizon objectivo, com raras apreciações de índole subjectiva. Hoje tentarei fazer diferente. Cinco dias não chegaram para conhecer Charlotenburg, Hansaviertel, Prenzalauer Berg e Wannsee. O início de Agosto é uma época sem ópera e concertos clássicos. A Deutsche Oper, uma das três da cidade, abre a temporada no próximo dia 28. Nada a fazer. O clima não é especialmente simpático: calor (26-28 graus, com ligeira descida a partir das dez da noite) e chuva intermitente. As obras entopem tudo, da Unter den Linden a Schloßplatz, passando pela St Hedwigs Kathedrale, bem como outras áreas menos nobres. Em Bebelplatz, defronte do Hotel de Rome, vimos um grupo de meia centena de rapazes e raparigas deitados no chão, em aparente estado de meditação. Eram 11 da manhã. Estariam a reflectir sobre o auto-de-fé nazi de Maio de 1933, realizado ali mesmo?

A ilha dos museus é um estaleiro. O mesmo se diga do troço que vai da Universidade Humboldt ao local onde existiu o Palast der Republik, o parlamento da antiga RDA. Após um debate público de cerca de cinco anos, o edifício foi demolido em 2006. No seu lugar está a ser construído uma espécie de CCB, com inauguração prevista para 2019, que fará contraste violento com a esplêndida Berliner Dom, a catedral barroca do outro lado da avenida.

Como em qualquer grande cidade, andar de metro é muito prático, mas, neste caso, o idioma dificulta a vida a quem o desconhece. O táxi é uma alternativa cara mas eficiente. Exemplo: da Porta de Brandemburgo ao KaDaWe são 16 euros às quatro da tarde. Por falar em táxis: do Aeroporto de Schoenefeld à Porta de Brandemburgo, onde fica o Adlon, o nosso hotel, foram 50 euros à chegada e 40 à partida (outro trajecto), sem gorjeta. Schoenefeld é uma viagem ao passado, onde a cada metro tropeçamos nos fantasmas da antiga RDA. Não deixa por isso de ser eficiente.

As comparações são inevitáveis. Berlim é uma cidade monumental, mas é uma monumentalidade diferente de Paris ou Madrid. É uma grande cidade, mas num sentido diferente ao de Londres ou Nova Iorque. O turismo não é tão opressivo como em nenhuma destas cidades, ficando a milhas da esquizofrenia de Roma ou Veneza. A maior surpresa foi a pujança do comércio, em todas as gamas de preços. Sinal inequívoco de civilidade: as dezenas de vitrines nos passeios da Kurfürstendamm (a Kudamm), que terá qualquer coisa como quilómetro e meio, permanecem com o recheio ao longo da noite. E não estamos a falar de souvenirs para turista pobre. Vitrines Rolex, Ferragamo, etc., iluminadas às 11 da noite, seriam um convite ao assalto noutro tipo de civilização.

Checkpoint Charlie não tem glamour mas tem memória. A minha geração sente um arrepio quando ali chega, mas suspeito que aos mais novos (os que nasceram a partir de 1990) o local seja indiferente.

Pedaços do muro podem ser vistos em vários locais. Na Potsdamerplatz existem cinco ou seis blocos. E, na Friedrichstraße, o Westin Grand faz questão de ter um a decorar a esplanada do bar.

Em traços gerais foi assim que vi Berlim. Clique na imagem.