quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

2015

Chega hoje ao fim um ano terrível. Lá fora é a guerra, formalmente iniciada com o 11 de Setembro, porque foi em Manhattan e em Washington, e a opinião pública ocidental que tinha olhado para o lado em Agosto de 1998, quando as embaixadas americanas em Dar es Salaam e Nairobi foram reduzidas a pó num ataque simultâneo da Al-Qaeda que fez mais de duzentos mortos, a opinião pública ocidental, dizia, viu-se obrigada a perceber que há um antes e um depois de 2001. O ano que hoje termina marca também o pesadelo das populações deslocadas pela maior vaga migratória dos últimos 70 anos.

Cá dentro percebemos finalmente que, com raras excepções, as nossas elites empresariais são associações de gangsters. O único sinal positivo chegou em Outubro, com o pacto das Esquerdas. António Costa foi o homem certo no lugar certo, mas, mais importante que o seu pragmatismo, foi a descoberta de que dois terços da população perdeu o medo. Se a perseverança de Costa fosse contrária ao sentir dos portugueses, o país tinha dito não à solução parlamentarista. Ao invés, tudo se passou como e quando ele quis sem que ninguém rasgasse as vestes. A Direita foi incapaz de organizar uma nova Alameda, porque afinal não há eleitores “enganados”. Esse sinal de maturidade permite ter esperança. A ver vamos.

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

ATTICUS LISH


Hoje na Sábado escrevo sobre Preparação Para a Próxima Vida, de Atticus Lish (n. 1972). Não é todos os dias que um estreante vence o prémio PEN/Faulkner de Ficção. Foi o que sucedeu com Atticus, filho de Gordon Lish, um dos editores mais influentes de Manhattan, e fazer parte do Meio literário ajuda. Atticus teve um percurso heterodoxo: entrou e saiu de Harvard, andou “fora dos eixos”, serviu na Marinha, trabalhou como operário, esteve de relações cortadas com o pai durante doze anos (após a morte da mãe), voltou à universidade, casou com uma coreana, viveu e leccionou inglês na China, etc. Por último mas não em último, levou cinco anos a escrever Preparação Para a Próxima Vida. Garante que o fez à mão. A prosa dá notícia de uma voz singular: «Então digam-me como se diz que o céu é alto», quer saber Zou Lei, a imigrante ilegal, co-protagonista do romance. Meia dúzia de páginas chegam para intuir que vamos mergulhar numa saga de gente desapossada à mercê de todo o tipo de abusos e arbitrariedade. Em suma, a história dos que vivem nas margens. É esse o material de Atticus. Se fosse nosso contemporâneo, Dickens disputaria o mesmo território. Nenhum glamour nimba a Nova Iorque de Atticus. Tudo se passa depois do 11 de Setembro, sob o signo da Lei Patriótica e das irregular renditions (acto de fazer circular “insurgentes” entre dois ou mais países, interrogando-os sob tortura) que permitem, por exemplo, a transferência de suspeitos de terrorismo de New Haven para o Egipto ou Israel, com o à-vontade de quem muda um prisioneiro de Brooklyn para Queens. É dessa América que perdeu a alma que o livro trata. Certo didactismo sobre a China («Dentro de trinta ou quarenta anos, vamos conseguir vencer a América ou a Rússia») não belisca o plot. Um dia, Zou encontra Skinner, antigo soldado no Iraque, lá onde nada fazia sentido, por ser «o país deles», e Skinner, não sendo um deles, depressa se deteriorou. Descrita em grande angular, a guerra prescinde de ênfase. Apenas factos: desespero, atrocidades, esquadrões da morte à revelia dos códigos de conduta. Skinner sobrevive (com stress pós-traumático) a três comissões. Zou apanha por tabela. Preparação Para a Próxima Vida é um retrato do lumpemproletariado de Nova Iorque, sendo Zou e Skinner guias desse submundo onde a violência policial dita as regras. Cerca de quinhentas páginas sobre o tema podiam dar azo, noutras mãos, a um exercício fútil de propaganda ou complacência. Não é o caso. Quatro estrelas e meia.

Escrevo ainda sobre a reedição, acrescentada de inéditos, de Não Percas a Rosa..., de Natália Correia (1923-1993). Não é segredo que a autora, tendo sido perseguida pelo Estado Novo, foi uma opositora declarada da deriva esquerdista em que o país mergulhou entre 25 de Abril de 1974 e 25 de Novembro de 1975. Muito poucos a acompanharam nessa luta. Cesariny e Vergílio Ferreira foram duas excepções. Como o essencial desse “combate” se fez na imprensa, importava coligir os textos dispersos. É essa lacuna que este livro vem preencher. Dividido em duas partes, junta Não Percas a Rosa, o Diário, agora reeditado, e Ó Liberdade, brancura do relâmpago, as crónicas do PREC. Nos dois casos, apêndices com manuscritos inéditos. Retratos e fac-símiles ilustram o volume, organizado e anotado com critério por Vladimiro Nunes. Se o Diário é eloquente no tocante ao desassombro da autora, as crónicas têm o alto teor de corrosão que se espera de textos de intervenção política imediata. Os inéditos dão notícia de factos desconhecidos: golpes combinados entre Spínola e Kaúlza, o rapto de um inspector da Pide, etc. Natália nunca pediu licença para dizer o que quis. Isso a distinguia da intelligentsia bem comportada. Quatro estrelas. Editou a Ponto de Fuga.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

ALEGADAMENTE, MORREU


Alegadamente, o Centro Hospitalar do Algarve terá cumprido as normas de transferência de doentes com AVC isquémico. Alegadamente, o Hospital de São José tem uma escala de serviço patusca. Alegadamente, não havia helicóptero para levar o doente para Coimbra. Alegadamente, vivemos num país da Europa.

A imagem é do Expresso. Clique.

SNS

A propósito das mortes que têm ocorrido com doentes em trânsito pelo Hospital de São José, convém lembrar que o Serviço Nacional de Saúde assenta na Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro, apresentada ao Parlamento pelos socialistas Mário Soares, António Arnaut (autor) e Salgado Zenha, tendo sido aprovada pelo PS, PCP, MDP-CDE, UDP e um deputado independente (ex-PS), e rejeitada pelo PSD, CDS e os 37 dissidentes do PSD que estiveram na origem da ASDI.

Não sei onde estava Marcelo Rebelo de Sousa em Junho de 1979, quando a Lei foi apresentada, discutida e aprovada. Sei apenas que o seu partido votou contra ela. A Direita, mesmo a civilizada, nunca gostou do SNS. E o Governo de Passos & Portas tudo fez para o destruir. Os episódios macabros que recentemente envolveram doentes transferidos de Santarém e de Faro para São José, são a ponta de um imenso iceberg.