segunda-feira, 8 de julho de 2019

O CARTOON DE MFB

O artigo que Maria de Fátima Bonifácio publicou anteontem no Público é execrável. Ponto. Sobre isso estamos conversados.

A indignação nacional vazada nas redes sociais — e o editorial de Manuel Carvalho, director do jornal — dão a medida da heresia.

Mas verifico com espanto que o direito à liberdade de expressão irrestrita deixou de estar em pauta. Vamos ver porquê.

Lembram-se da polémica internacional provocada pela publicação, a 30 de Setembro de 2005, de doze caricaturas de Maomé no jornal dinamarquês Jyllands-Posten? O jornal reivindicava o direito a «desafiar, blasfemar e humilhar o Islão...».

Em Janeiro de 2006, tablóides noruegueses, suíços, franceses, espanhóis, italianos, húngaros e polacos solidarizaram-se com o jornal dinamarquês, publicando alguns desses cartoons. Em Fevereiro, o Die Welt, o El País e o Monde, três jornais de referência, aderiram discretamente à cruzada. Em Portugal, pelo menos dois jornais, o Público e o Expresso, fizeram o mesmo, demarcando-se ambos, em editorial, da afronta anti-Islão. Em França, o proprietário do France Soir despediu o editor do jornal. O mundo de língua inglesa ignorou o assunto.

Por que razão o Jyllands-Posten publicou os doze cartoons? Porque um dinamarquês de nome Kaare Bluitgen, conhecido pela sua islamofobia, escreveu um livro sobre a vida de Maomé, destinado às crianças e juventude, onde apresenta o profeta como pedófilo e criminoso de guerra. Nenhum desenhador quis ilustrar a obra e Bluitgen queixou-se do facto. Vai daí, o Jyllands-Posten, jornal popular de grande circulação, deu eco às queixas, convidando 40 caricaturistas a fazer cartoons de Maomé. Doze aceitaram. Deu no que deu.

A tranquibérnia durou mais de um ano: crise diplomática entre a Dinamarca e o mundo árabe (reunião da Liga e da Conferência Islâmica, embaixadores retirados de Copenhaga), embaixada da Dinamarca em Beirute destruída, embaixadas da Dinamarca e da Noruega vandalizadas e incendiadas em Damasco, ataques a igrejas católicas, atentados contra diplomatas, etc., saldou-se em mais de duzentos mortos. Ao pé disso, os ataques ao Charlie Hebdo, em 2011 e 2015, embora letais, não levaram tão longe a discussão da liberdade de expressão irrestrita.

Com os blogues no auge em Setembro de 2005, as discussões foram homéricas. Nove em cada dez bloggers defendiam a tese da liberdade de expressão irrestrita. Fui dos poucos a contrariar a tese, o que me valeu insultos, mal-entendidos e cortes de relações. Continuo a pensar como pensava.

Na época, dei como exemplo: «Se, por hipótese, em vez do livro sobre Maomé, o sr. Bluitgen tivesse publicado uma versão do Kama Sutra em que a figura da rainha da Dinamarca fosse o móbil, o coro solidário atingia estas proporções?» O post é de 4 de Fevereiro de 2006, e pode ser lido no meu livro de crónicas Intriga em Família, de 2007.

Dito de outro modo: há causas boas e más. Ainda bem. O argumento da liberdade de expressão irrestrita é que se mantém maleável em matéria de pesos e medidas.