quinta-feira, 4 de julho de 2019

MENASSE & VENTRELLA


Hoje na Sábado escrevo sobre A Capital, do austríaco Robert Menasse (n. 1954), vencedor do Prémio Livro Alemão em 2017. Nascido no seio de uma família judaica, autor de uma obra muito extensa, na ficção e no ensaio, fez agora a sua estreia na edição portuguesa com este romance bem esgalhado sobre o modus operandi da Comissão Europeia. Para o escrever, Menasse instalou-se em Bruxelas, onde passou seis anos a “espremer” altos funcionários da UE — os énarques e os outros —, a consultar arquivos e a ler documentação de índole diversa, em especial os tratados de Maastricht, Schengen e Lisboa. Também estudou os mecanismos de funcionamento da Comissão, enquanto investigava as rotinas e a vida pessoal dos funcionários do edifício Berlaymont, sobretudo os da direcção-geral de Educação e Cultura, um departamento sem dinheiro ou qualquer espécie de influência. A partir daí, ficcionou o ‘Big Jubilee Project’ que teria por objecto colocar as memórias de Auschwitz no centro das comemorações do 50.º aniversário do Tratado de Roma. Misturar o Holocausto com a burocracia transnacional europeia («as nações, as identidades nacionais, tudo isso passou ali a ser uma noção sem efeito») parece-me uma metáfora excessiva, mas temos de a levar à conta de sarcasmo. O mesmo se diga do modo como evoca Musil e O Homem sem Qualidades. Menasse coreografa bem as personagens que decidem a vida dos europeus. Bem vista as coisas, são todos iguais: alemães, gregos, franceses ou húngaros. Os episódios pícaros matizam a narrativa, e têm eficácia instrumental, mas prevalece o juízo reticente. Sirva de exemplo a síntese da adesão austríaca: «A Áustria aderira à UE e durante bastante tempo os representantes dos interesses nacionais não entenderam que lhes fora montada uma armadilha.» Nada que não tivesse dito num livro de 2012 sobre “a fúria” dos europeus. Doravante, ninguém poderá dizer que a União Europeia não inspirou o guião de uma ópera bufa que nem sequer deixa de fora o consabido conflito Norte/Sul, ilustrado pelas divergências entre o presidente da Comissão Europeia e o presidente do Conselho Europeu, homens de nacionalidades diferentes e culturas antagónicas. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre História de Uma Família Decente, da italiana Rosa Ventrella. Quem gosta do universo ficcional de Elena Ferrante vai com certeza apreciar esta saga. Não confundir universo ficcional com registo semântico. Em vez de Nápoles, Bari, também no Sul miserável de Itália, mas na outra costa. A Apúlia não é a Campânia, embora os problemas sejam os mesmos. Infelizmente, os desapossados das margens são iguais em toda a parte. Ventrella usa o discurso, sempre fluente, para dar voz às mulheres. Maria, por exemplo. Tem 12 anos, conhecem-na por Malacarne, ferrete da avó Antonietta, e todos os dias sofre o abuso da pobreza. Em plena sala de aula, Pasquale não hesita: «Com a altura que tens estás mesmo a jeito para me abocanhares a pichota.» O trivial, naquele bairro. A tradição tem muita força (eram os anos 1980) e os mais fracos submetem-se à opressão. Romance de formação e, de certo modo, de redenção social, História de Uma Família Decente é uma grata surpresa. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.