quinta-feira, 11 de julho de 2019

CESARINY BIOGRAFADO


Hoje na Sábado escrevo sobre O Triângulo Mágico, a biografia de Mário Cesariny escrita por António Cândido Franco, professor de linguistica e literatura na Universidade de Évora. Biógrafo de Agostinho da Silva, autor de romances histórico-biográficos, estudioso do surrealismo, especialista em Pascoaes e editor da revista libertária A Ideia, Franco encarregou-se de fazer a tão esperada biografia de Cesariny, poeta e pintor, nome maior do surrealismo português.

O volume inclui quadro genealógico, Portaló, doze capítulos, um epílogo, vários anexos, portfolio fotográfico, índice de abreviaturas e uma extensa tábua bibliográfica activa e passiva. Franco, que conheceu pessoalmente o seu biografado, teve acesso a importantes acervos de correspondência (sendo o mais importante o do artista plástico Cruzeiro Seixas), tendo conversado com testemunhas idóneas do percurso de Cesariny. Índice onomástico não há. O texto acompanha a cronologia, mas tem múltiplas derivas. Muito bem documentada toda a história do Grupo Surrealista de Lisboa.

Numa narrativa de cunho próprio, isenta de hagiografia, Franco não deixa de fora nenhum dado importante: nascimento (1923) na Rua da Palma, brevíssima passagem pelo liceu, início da amizade (1935) com Cruzeiro Seixas, passagem pela Escola António Arroio, estudos de música com Lopes Graça, primícias literárias (1944) à boleia do neo-realismo, amizade com Isabel Meyrelles, descoberta (1947) do surrealismo, o Café Gelo, primeiros quadros e colagens, ruptura (1948) com O’Neill e o Grupo Surrealista de Lisboa, estreia em livro — Corpo Visível, 1950 —, morte do amigo António Maria Lisboa, anos de liberdade vigiada (1953-58) pela polícia a pretexto da condição homossexual, primeira exposição individual em Lisboa (1958), cumplicidade electiva com Natália Correia, publicação de Nobilíssima Visão (escrito em 1945 mas só publicado em 1959), diatribes de e com Jorge de Sena e Gastão Cruz, elogios de Gaspar Simões, amizade com Maria Helena Vieira da Silva e Árpád Szenes, bolseiro da Gulbenkian, viagem a Paris (onde esteve preso) e largas estadias em Londres a partir de 1964, zanga com Luiz Pacheco, organização da representação nacional à Exposição Surrealista Mundial de Chicago (1976), visita à Pirâmide do Sol em Teotihuacan, tença por mérito cultural atribuída pelo Estado, publicação do volume antológico Textos de Afirmação e de Combate do Movimento Surrealista Mundial (1977), tentativa gorada de obter o lugar de adido cultural na embaixada de Portugal na Cidade do México por alegado veto do embaixador José Fernandes Fafe, suicídio de Ricarte-Dácio (1995), republicação sistemática da obra pela Assírio & Alvim, Grande Prémio de Arte da Fundação EDP (2005), Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, cancro, morte (2006) e a surpresa do testamento: espólio artístico para a Fundação Cupertino de Miranda, mais de um milhão de euros em dinheiro vivo para a Casa Pia de Lisboa.

Entre outros, O Triângulo Mágico tem o mérito de deixar claro o motivo pelo qual um poeta com obra de tal envergadura nunca recebeu um prémio literário. Verdade que, num gesto simbólico, a Associação Portuguesa de Escritores lhe atribuiu, praticamente no leito de morte, o Grande Prémio Vida Literária. Tudo o afastava do establishment literário: de origem proletária, refractário aos salões bem pensantes, viveu de costas voltadas para a Academia, fez apostasia com o neo-realismo, teve problemas com a polícia de costumes, escreveu em jornais de Direita (O Dia, Jornal Novo, O Diabo) contra os militares e a Esquerda marxista, insultou gente influente e, pecado maior, nunca escondeu a sua predilecção por marujos. Valeram-lhe os amigos, sobretudo Cruzeiro Seixas, mesmo durante a longa ausência deste em Angola; Ricarte-Dácio, generoso mecenas dos anos de Londres; Alberto de Lacerda, a quem ficou a dever o conhecimento da capital britânica e, por arresto, contactos preciosos; Helder Macedo e Luís Amorim de Sousa, anfitriões das escapadas inglesas — a sequência de Poemas de Londres contém alguns dos melhores poemas que escreveu —; e, já no fim da vida, Manuel Hermínio Monteiro e Manuel Rosa. Poderá não ser a biografia definitiva, mas não pode ser ignorada. Quatro estrelas. Publicou a Quetzal.