quinta-feira, 6 de setembro de 2018

PAGLIA & CUSK


Hoje na Sábado escrevo sobre Mulheres Livres Homens Livres, de Camille Paglia (n. 1947). Cada novo livro da autora é sempre um acontecimento. Mesmo que seja uma compilação de textos de natureza diversa sobre sexo, género e feminismo: ensaios académicos, conferências, recensões, capítulos de outras obras. Mulheres Livres Homens Livres é uma visão alargada sobre a sociedade contemporânea e a cultura ocidental (arte e decadência). Quem leu Personas Sexuais, a obra-prima que em 1990 projectou o nome da autora para fora da Academia, sabe do que falo. Palavras suas: «As ideias fundamentais deste livro são a liberdade de pensamento e a liberdade de expressão.» Oriunda do feminismo radical e dos círculos académicos mais exigentes, Paglia nunca evitou chocar de frente com o establishment: «Permanece um mistério a razão pela qual um psicanalista trapaceiro, cínico e verborreico como Jacques Lacan […] se tornou o ídolo de tantas feministas anglo-americanas.» Com o sarcasmo de regra, os temas abordados reportam à crise do sistema de ensino universitário americano, ao retrato que Mapplethorpe fez de Patti Smith, a sexo nas escolas, à violação, ao aborto, aos equívocos da candidatura presidencial de Hillary Clinton, à série de televisão The Real Housewives, a cirurgia plástica, à prática do masoquismo por parte das classes médias educadas, à «mistela bafienta» do pós-estruturalismo, à regressão dos grupos feministas, etc. Paglia nunca desilude. A desenvoltura da sua escrita, empenhada, envolvente, apoiada numa vasta erudição e num desprezo total pela mentalidade dominante, fazem de cada livro uma provocação. Em O espelho cruel: tipos físicos e imagens do corpo tal como os reflecte a arte, a digressão sobre arte (escultura, pintura, fotografia, design publicitário) tem como contraponto a aridez do registo dos media: «Para o bem e para o mal, o corpo tornou-se um indicador identitário fundamental…» Entre vários outros, são recuperados os artigos dedicados a Nefertiti e Madona: «Madona é a verdadeira feminista. Ela põe a nu o puritanismo e a ideologia sufocante do feminismo americano […] Madona é o futuro do feminismo.» Isto foi publicado em 1990 no New York Times. Cinco estrelas. Publicou a Quetzal.

Escrevo ainda sobre o penúltimo romance de Rachel Cusk (n. 1967), Trânsito, que corresponde ao livro do meio da trilogia Outline, a história de uma escritora divorciada, com dois filhos, decidida a reformar uma casa em ruínas. A casa existe. Os amantes de parábolas têm aqui o relato escarolado do que seja reconstruir uma vida reduzida a cacos. A prosa irrepreensível de Cusk transfigura o quotidiano mais prosaico no tipo de narrativa que prende o leitor da primeira à última página. A acção decorre em Londres, numa zona isenta de glamour. A intriga salta com naturalidade de cenas da vida doméstica para reflexões sobre cães, formação de adolescentes, idiossincrasias literárias (a escrita onde ‘nada acontece’), responsabilidade social, trabalho precário, gentrificação, imigrantes, multiculturalisno, conjugalidade entre casais do mesmo sexo: «Não era propriamente a primeira vez que presenciara a homossexualidade: era a primeira vez que tinha presenciado amor.» O fluxo da consciência nunca derrapa. Trânsito respeita a arquitectura da trilogia, mas tem vida própria. Nenhum óbice para quem não tenha lido A Contraluz, o primeiro volume da vida de Fay. Quatro estrelas. Publicou a Quetzal.