quinta-feira, 30 de agosto de 2018

LACERDA & MENDELSOHN


Hoje na Sábado escrevo sobre Labareda, antologia da obra poética de Alberto de Lacerda (1928-2007). A distância rasura. Foi o que aconteceu com Lacerda, ausente de Portugal desde 1951. Lisboa foi um intervalo fugaz entre Lourenço Marques e Londres. O périplo americano e as peculiares idiossincrasias do autor acentuaram a fractura com os media e a universidade portuguesa. Injustiça óbvia, porque falamos de um grande poeta. No ano em que Lacerda faria 90 anos, Luís Amorim de Sousa organizou esta antologia a que chamou Labareda. O volume inclui poemas seleccionados dos onze livros publicados em vida do autor, um dos quais, Sonetos, sem distribuição comercial. Este núcleo inclui os dois tomos de Oferenda (1984 e 1994) que, por sua vez, coligem cinco livros até então inéditos. Acolhe ainda 28 poemas inéditos que o antologiador foi buscar ao espólio. Mas antes surgem outros quatro, extraídos de dois títulos omissos da bibliografia: O Pajem Formidável dos Indícios, datado de 2010, e A Luz Que Se Escondeu no Escuro, de 2016. Publicados onde? As datas reportam a quê? Sobre eles, a cronologia de Luís Amorim de Sousa faz silêncio. Mesmo que façam parte de livros organizados em vida do autor, seria mais correcto tê-los incluído na secção de inéditos. Quem conhece a obra publicada é por ali que começa. É estranho que, num acervo tão vasto («deixou inéditos para cima de mil poemas», lê-se no prefácio), Luís Amorim de Sousa tenha escolhido os 28 poemas que escolheu. Foi o melhor que encontrou? Não teria sido preferível ater-se à obra publicada? Um dos mais importantes livros de Lacerda, Mecânica Celeste, está representado com 14 poemas. Todos sabemos que antologiar significa seleccionar, mas Luís Amorim de Sousa conseguiu a proeza de deixar de fora os poemas mais significativos de Mecânica Celeste. O leitor desta antologia não tem oportunidade de ler Depois de veres Guerra e Paz de Sergei Bondarchuk, Vem, Vimos, Vietnam, Os pés nus correspondem em grinalda e outros. Porquê? Porque os versos falam de merda, caralhos, cus, conas, orgasmos, putas relaxadas, escarros e, last but not least, do Império britânico cagando...? Porquê insistir no transcendental? Duas estrelas. Publicou a Tinta da China.

Escrevo ainda sobre Uma Odisseia, do norte-americano Daniel Mendelsohn (n. 1960). Escrever para o grande público sobre literatura grega e romana não está ao alcance de todos. Como demonstra este livro, Mendelsohn é dos melhores. Professor de Humanidades no exclusivo Bard College de Annandale-on-Hudson, Mendelsohn descreve um seminário académico sobre a Odisseia onde teve a surpresa de encontrar o pai, professor de matemática, então com 81 anos. Isso explica o subtítulo: Um pai, um filho, uma epopeia. A partir dessa experiência de 2011, Mendelsohn escreveu este curioso livro de memórias que é, ao mesmo tempo, uma close reading do poema de Homero. Não se trata de ensaio: são memórias com nomes alterados e detalhes modificados. O autor socorre-se de todos os recursos narrativos de forma a que o leitor não sinta o peso da erudição. Para sinalizar o plot, cita Aristóteles na breve nota que serve de proémio. Depois do seminário, que dura 16 semanas, Mendelsohn e alunos (o pai incluído) partem num cruzeiro pelo Mediterrâneo. A exegese do poema de Homero suscita questões identitárias que o autor desenvolve com elegância. Cinco estrelas. Publicou a Elsinore.