quarta-feira, 28 de março de 2018

BELLOW & MONGINHO


Hoje na Sábado escrevo sobre Cartas e Recordações, de Saul Bellow (1915-2005). Seria pleonástico enfatizar a importância do autor, mas, no momento em que chega às livrarias portuguesas o volume que colige parte da sua correspondência, convém recordar o óbvio: algumas correspondências são, de facto, Literatura. É o caso desta. Por razões facilmente compreensíveis, a presente edição não contempla as 708 cartas do original americano. No prólogo, Salvato Telles de Menezes, o tradutor, explica ter privilegiado temas representativos («ideias literárias, ideias político-sociais, religiosas…»), bem como interlocutores familiares ao leitor português, como são os escritores e os políticos internacionalmente conhecidos. Não obstante, no fim de algumas cartas, existem verbetes sucintos das pessoas citadas. A vida íntima não foi esquecida, uma vez que a selecção abrange cartas para os filhos e para as ex-mulheres (casou cinco vezes). E também inclui cópia de uma carta enviada em 1972 à Century Association, um clube elitista de Manhattan, propondo com vigor a não-admissão do homem que, em sua opinião, era responsável pela decadência da Partisan Review. Oriundo de uma família de judeus russos, os Belo, Saul Bellow nasceu no Quebeque, para onde o pai tinha fugido após problemas em São Petersburgo. Foi para Chicago com 9 anos feitos, mas só aos 28 obteve a cidadania americana. Estudou antropologia e sociologia antes de enveredar pela carreira literária. O primeiro romance, Na Corda Bamba (1944) despertou de imediato a atenção de Edmund Wilson, o crítico mais influente da América. Quando, em 1976, recebeu o Nobel da Literatura, era já um autor consagrado no país que adoptou como seu e sobre o qual escreveu de forma admirável. Iconoclasta, adversário confesso do multiculturalismo académico, ficou célebre a boutade, em directo na televisão, acerca de nunca ter lido nada do ‘Proust da Papua-Nova Guiné’… Uma conferência sobre o papel dos escritores na universidade exacerbaria os ânimos. Mas esse era o lado para que Bellow dormia melhor. O arco cronológico desta compilação vai de 1932 a 1982. São muito interessantes as opiniões sobre as mulheres que amou, a obra de outros escritores, os países que visitou e os factos políticos de que foi testemunha. Cinco estrelas. Publicou a Quetzal.

Escrevo ainda sobre Um Muro no Meio do Caminho, de Julieta Monginho (n. 1958), magistrada do Ministério Público e romancista. Em 2016, a autora voluntariou-se para trabalhar num campo de refugiados da ilha grega de Chios. O resultado foi  o seu livro mais recente. O leitor lembra-se logo do verso famoso, Tinha uma pedra no meio do caminho, de Drummond de Andrade. Contra a evidência, Um Muro no Meio do Caminho é um romance. Os escritores têm a capacidade de transmudar a realidade em ficção, e foi o que autora fez, a partir da sua experiência na Grécia: «Este é um livro de ficção. Nenhuma das personagens, excepto J., corresponde a uma pessoa real.» Não será abusivo supor que J. seja a própria autora. As ‘histórias’ são pontuadas com factos concretos e directivas oficiais sobre populações deslocadas: «Angela Merkel decidiu apoiar a visão segundo a qual reenviar as pessoas para a Hungria era logisticamente impossível e moralmente injustificável.» Por intermédio destes inserts, a autora ilustra o pano de fundo da tragédia. Estamos perante um testemunho que nos alerta para a urgência de um problema que arrisca ser a vergonha deste século. Quatro estrelas. Publicou a Porto Editora.