sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

TERESA


Com Estranhezas, Maria Teresa Horta foi a vencedora do Prémio Literário Casino da Póvoa. O anúncio foi feito há pouco, na abertura da 22.ª edição do festival Correntes d’Escritas. 

Nas palavras do júri, o livro faz a «síntese de um percurso poético ancorado na celebração do corpo e do desejo, que estabelece um diálogo transgressor com a tradição lírica e medieval e renascentista [...] fazendo-as implodir num erotismo vital, que se exerce numa contínua experimentação dos limites da nudez e mistério da palavra.» 

Poeta e ficcionista, Maria Teresa Horta, nascida em Lisboa em 1937, publicou o primeiro livro de poesia em 1960, e o primeiro romance em 1970. Com Tatuagem integrou o núcleo fundador do grupo Poesia 61. Feminista heterodoxa, foi co-autora de Novas Cartas Portuguesas (1972), obra pela qual teve de responder em tribunal, num processo — conhecido como das Três Marias — que suscitou ressonância mediática planetária. Da sua vasta bibliografia poética destacaria Candelabro (1964), Minha Senhora de Mim (1971), Educação Sentimental (1975), Os Anjos (1983), Poemas para Leonor (2012), A Dama e o Unicórnio (2013) e o livro ora laureado.

Na área da ficção o destaque não pode ir senão para As Luzes de Leonor (2011), monumental romance sobre a marquesa de Alorna, sua ancestral. Mas Ema (1984) e A Paixão Segundo Constança H. (1994), dois exemplos entre outros, são prova de que alguma da melhor ficção portuguesa tem sido escrita por poetas.

Mulher de Esquerda, Grande-Oficial da Ordem do Infante D. Henrique, Maria Teresa Horta foi jornalista durante mais de trinta anos, tendo, no vespertino A Capital, coordenado o suplemento Literatura e Arte. Foi ainda crítica de cinema e dirigente do ABC Cineclube de Lisboa. Um dos seus poemas mais celebrados, Verão Coincidente (1962), deu origem a uma curta-metragem de António de Macedo. Como tradutora, devemos-lhe Ópio, de Cocteau.

Entre outros prémios e distinções, recebeu em 2011 o Prémio D. Dinis da Fundação Casa de Mateus. Em 2017 recusou receber o Prémio Oceanos que lhe fora atribuído ex-aequo com o escritor brasileiro Bernardo Carvalho.

Parabéns, Teresa. 

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quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

SEIS LIVROS


Hoje na Sábado.

Para surpresa de muitos, o Nobel da Literatura 2020 foi atribuído a uma poeta praticamente desconhecida em Portugal. Falo da norte-americana Louise Glück (n. 1943), oriunda de uma família de judeus russos e húngaros. Traduzido por Ana Luísa Amaral, A Íris Selvagem venceu o Pulitzer de Poesia em 1993. Conjunto de 54 poemas em torno de um jardim, alegoria de Deus, cerca de vinte têm o mesmo título: Matinas e Vésperas. Logo a abrir, o poema titular dá o mote: «É muito duro sobreviver assim, / a consciência / sepultada na terra escura.» Onde lemos rosas, violetas, íris, etc., estão pessoas. Elíptica, nimbada de certa tonalidade bíblica, a poesia de Glück demarca-se ostensivamente do que convencionou chamar-se “poesia do real”. Se começar por ler “Final de Inverno”, “Vento em Fuga” ou “A Porta”, vai querer ler tudo, incluindo os outros três livros da autora já disponíveis. Agora é só aguardar por The Triumph of Achilles, uma das suas obras mais notáveis. Publicou a Relógio d'Água.

Traduzido directamente do russo por Larissa Shotropa, foi publicado Garganta de Aço, primeiro volume dos contos completos de Mikhail Bulgakov (1891-1940). Seriados cronologicamente, incluem “Apontamentos de um jovem médico”, ciclo sobre o início da sua actividade clínica em Smolensk. Em jeito de autobiografia ficcionada, Bulgakov não poupa o leitor aos detalhes de uma traqueotomia. Mais tarde, Bulgakov tornou-se escritor a tempo inteiro, mas acabou por cair em desgraça junto de Estaline. Só trinta anos após a sua morte as obras começaram a ser divulgadas. Por exemplo, a primeira edição não censurada de O Mestre e Margarita é de 1973. Um clássico entre clássicos. Publicou a E-Primatur.

O poeta e ensaísta espanhol Antonio Gamoneda (n. 1931) publicou Um Armário Cheio de Sombra, memórias da infância e adolescência de um rapaz pobre das Astúrias, nos anos de sombra da Guerra Civil de Espanha. O relato seco da miséria extrema, dos abusos do colégio de frades, da repressão franquista, da morte do pai (a seu pedido, após um derrame cerebral, a mulher provocou-lhe uma overdose de morfina), do primeiro emprego, antecipando a idade adulta para os catorze anos, fazem deste livro um testemunho admirável. Publicou a Minotauro.

Quem gosta de ficção histórica ambientada na Idade das Trevas e, em especial, dos livros de Ken Follett (n. 1949), vai com certeza apreciar Kingsbridge: O Amanhecer de Uma Nova Era, prequela de Os Pilares da Terra. O novo livro recua até ao ano 997dC, durante os ataques a Inglaterra vindos do Leste (os viquingues) e do Oeste (os galeses). A estrutura romanesca não difere dos anteriores, embora não esteja focado numa grande construção. Desta vez, sobrelevam os efeitos colaterais da política. Eventuais especulações sobre dados históricos não beliscam o prazer da leitura. Afinal, trata-se de um romance de aventuras bem esgalhado. Publicou a Presença.

Com Mulheres da Minha Alma, a chilena Isabel Allende (n. 1942) acrescentou um título à extensa bibliografia feminista. Rebelde contra a autoridade masculina, fala das mulheres da sua alma: sua mãe, sua filha Paula e a amiga e agente Carmen Balcells. Mas também de Olga Murray (a salvadora de meninas nepalesas), das escritoras de eleição e de bruxas. Numa linguagem alheada de jargão académico, escalpeliza a realidade chilena, mas também a de outras latitudes, como a norte-americana. Uma boa surpresa. Publicou a Porto Editora.

Romancista, dramaturgo e ensaísta, é sempre gratificante voltar a Don DeLillo (n. 1936), o derradeiro guru da literatura norte-americana. Depois de ter escrito sobre temas tão diversos como o advento da Era digital, o assassinato de Kennedy, fraude fiscal, linguística, dissuasão nuclear, artes performativas, adultério, terrorismo, Wall Street, desporto, televisão, o 11 de Setembro (o melhor romance sobre a tragédia de 2001 continua a ser O Homem em Queda), velhice, etc., chegou a vez de escrever sobre o futuro próximo. Publicado em plena pandemia, O Silêncio, romance minimal que podia ser uma peça de teatro, centra-se no Super Bowl de 2022. Em Nova Iorque, defronte de um televisor, ansiosas pela final do campeonato, três pessoas aguardam a chegada de um casal amigo regressado de Paris (ignoram que o avião de Jim e Tessa tenha tido que fazer uma violenta aterragem de emergência). Até que tudo pára: televisores, laptops, relógios, telefones. Com o colapso geral da energia, a cidade está mergulhada na escuridão. Apocalipse da Internet provocado pela China? Ciberataque de origem russa? Início da Terceira Guerra Mundial? Invasão extraterrestre? Nenhum dos cinco sabe o que pensar. Deveras inquietante. Publicou a Relógio d'Água.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

LAWRENCE FERLINGHETTI 1919-2021


Vítima de doença pulmonar intersticial, Lawrence Ferlinghetti morreu anteontem à noite na sua casa em São Francisco.

Faria 102 anos no próximo mês de Março. Poeta, escritor, crítico de arte, tradutor, artista plástico, editor e livreiro, ocasional activista político, Ferlinghetti foi quem, a partir de 1953, deu a conhecer ao mundo a Geração Beat. Sem ele, provavelmente não haveria tão cedo Ginsberg, Kerouac, Corso e outros.

Ferlinghetti não conheceu os progenitores: o pai morreu de síncope cardíaca ainda ele não era nascido, a mãe abandonou-o recém-nascido antes de ser internada num hospital psiquiátrico. Foi uma tia que o levou para Estrasburgo, onde passou a infância (o francês foi a primeira língua que aprendeu). De regresso a Nova Iorque, a tia Émilie tornou-se governanta em casa de uma família rica, os Bisland, que proporcionaram a Ferlinghetti uma educação esmerada em colégios privados.

Depois dos primeiros estudos universitários alistou-se na Marinha de Guerra, tendo visto de perto as ruínas de Nagasaki. Depois da guerra estudou literatura, em Columbia, e mais tarde na Sorbone (Paris), mas mudou-se para São Francisco em 1951. E foi aí que tudo mudou: casou com Selden Kirby-Smith e abriu, com um amigo, a City Lights Pocket Book Shop. 

Preso e julgado por obscenidade por ter publicado Uivo — Howl and Other Poems, 1956 —, de Ginsberg, Ferlinghetti acabou  absolvido e o poema tornou-se um bestseller internacional. O livro tinha sido impresso em Londres, enviado para os Estados Unidos e apreendido assim que chegou às livrarias. 

Em 1958, o seu primeiro livro de poesia, A Coney Island of the Mind, vendeu mais de um milhão de exemplares. Mas houve congressistas a pedirem a interdição da obra que, na opinião deles, ridicularizava a crucificação de Cristo. Tudo muda e, em 1998, Ferlinghetti era Poet Laureate.

Entre poesia, ficção, teatro, memórias, diários de viagem e uma heterodoxa autobiografia publicada quando fez cem anos — Rapazinho, 2019 —, Ferlinghetti deixou mais de cinquenta títulos.

Em São Francisco, desde 2019, o dia do seu aniversário [24 de Março] é celebrado como Dia Lawrence Ferlinghetti.

Na imagem, Ferlinghetti em 2006. Clique.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

PASSARAM 40 ANOS


Eram 18:20 em Madrid quando, a 23 de Fevereiro de 1981, o tenente-coronel Antonio Tejero invadiu o Palácio das Cortes à frente de um pelotão de Guardas Civis. 

Nessa segunda-feira, as Cortes procediam à investidura de Leopoldo Calvo-Sotelo como Presidente do Governo de Espanha. Calvo-Sotelo sucedia a Adolfo Suárez, que renunciara a 29 de Janeiro.

Enquanto as Cortes eram invadidas, a cidade de Valência era ocupada por meia centena de tanques e três mil militares golpistas afectos ao general Alfonso Armada e ao tenente-general Jaime Milans del Bosch.

Através da televisão, era uma da madrugada de 24 de Fevereiro, Juan Carlos I, rei de Espanha, exortou os espanhóis a resistirem e a defenderem a Constituição: «A Coroa não pode tolerar de forma alguma acções ou atitudes de pessoas que tentem interromper pela força o processo democrático que a Constituição votada pelo povo espanhol determinou.» O discurso do rei desencorajou os revoltosos.

O sequestro das Cortes terminou ao meio-dia do dia 24. Por recusa peremptória do rei, abortou a tentativa de constituir um Governo provisório de salvação nacional. Um telefonema de Juan Carlos forçou a rendição de Alfonso Armada e Milans del Bosch. Tejero e outros golpistas foram presos. Calvo-Sotelo foi investido ao fim da tarde de 24 de Fevereiro.

O Supremo Tribunal condenou Alfonso Armada, Milans del Bosch e Tejero a 30 anos de prisão, embora nenhum tenha cumprido a pena na totalidade. Foram também condenados outros trinta golpistas. 

Na imagem, a foto que correu mundo: o momento em que Tejero ordena aos deputados que se atirem ao chão. Clique.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

O NAVIO FANTASMA


Passados 50 anos sobre o Caso Angoche, o que se passou continua a ser um mistério.

Apenas se sabe que, no dia 24 de Abril de 1971, foi avistado à deriva, com fogo a bordo, entre as cidades de Quelimane e da Beira (costa de Moçambique), o navio de cabotagem Angoche, da Companhia Moçambicana de Navegação. O alerta foi dado no dia 27 pelo petroleiro Esso Port Dickson, com pavilhão do Panamá. Está por esclarecer o hiato de três dias. Curiosamente, Moçambique só reportou o caso a Lisboa a 6 de Maio. E foi a PIDE que o fez, tendo o relatório desaparecido depois do 25 de Abril.

O Angoche transportava material de guerra, treze tripulantes negros, dez tripulantes brancos e um cão. Não havia registo de passageiros, mas há quem sustente a presença de um. O navio tinha saído de Nacala na véspera, com destino a Porto Amélia (Pemba), no Norte, mas, em vez disso, rumou a Sul.

Quando, no dia 3 de Maio, a polícia marítima e a PIDE conseguiram entrar a bordo, encontraram apenas o cão. O cão e sinais de explosões na ponte de comando e na casa das máquinas, estando inoperantes todos os sistemas de comunicação. O material de guerra sumiu. Nas cabines dos tripulantes brancos não havia qualquer vestígio de pertences, como vestuário, calçado e objectos pessoais.

As polícias políticas da África do Sul (a BOSS) e da Rodésia (a CIO) juntaram-se à PIDE, mas nada de concreto transpirou para a opinião pública. 

O Angoche foi atacado? Em caso afirmativo, por quem? Golpe interno executado pela ARA? O que aconteceu aos 23 homens? Por que razão os tripulantes negros deixaram tudo a bordo, incluindo os coletes de salvação? Por que razão o radiotelegrafista se “esqueceu” de embarcar, ficando em Nacala? 

O navio foi rebocado para a baía de Lourenço Marques, onde chegou a 6 de Maio. Estando o navio a cem milhas da Beira, não teria sido mais lógico ser rebocado para lá? O suicídio de uma cabareteira da Beira, tida como próxima de um oficial da tripulação, adensou o mistério.

Nos círculos da oposição democrática moçambicana constava que a tripulação tinha sido levada para Dar es Salaam, na Tanzânia. Fantasia? Seja como for, o governo de Julius Nyerere desmentiu categoricamente. Também se falou de um submarino russo. Delírio? Parte desses homens voltou a Portugal? Quando e em que circunstâncias? Quanto sei, as famílias nunca comentaram o assunto.

Prevalecem duas versões: vários tripulantes, brancos e negros, teriam sido executados em Nachingwea, o campo de reeducação que a FRELIMO manteve na Tanzânia até aos anos 1990; os restantes teriam regressado a Portugal ao fim de alguns anos. Mas tudo isto são suposições.

Sobre o assunto estão publicados pelo menos três livros, um deles, o único que li, de Eduardo Metzner Leone. Se os media querem discutir a Guerra Colonial e, por arrasto, a descolonização, investiguem. Com a bibliografia disponível nem é necessário partir muita pedra.

Na imagem, o Angoche adernado na baía de Lourenço Marques em 1971.

domingo, 21 de fevereiro de 2021

NATÁLIA CORREIA



UM POEMA POR SEMANA — Para hoje escolhi A Defesa do Poeta, de Natália Correia (1923-1993), poema com que a autora respondeu aos juízes do Tribunal Plenário durante o processo que lhe foi movido por ter organizado a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica (1966). Natália foi condenada a três anos de prisão, com pena suspensa. Quando se encontraram em 1968 num acto oficial, Marcello Caetano recusou apertar-lhe a mão. 

Natural da ilha de São Miguel, Natália deixou os Açores aos 11 anos, vindo para Lisboa com a mãe e a irmã. Começou a publicar em 1947 e, como Jorge de Sena fixou numa síntese lapidar, impôs-se na vida literária «pela forma como soube transformar o escândalo numa espécie de terror sagrado do provincianismo embevecido

Além de poesia, publicou cinco romances, uma colectânea de contos, sete peças de teatro, cinco volumes de ensaio, um corrosivo diário dos anos da revolução (1974-75) e um livro de viagens. Organizou uma dezena de antologias: poesia galaico-portuguesa, barroco, surrealismo, erotismo, etc. Foi também editora, tradutora, conferencista, cronista, directora do Século e da revista Vida Mundial, dirigente na Secretaria de Estado da Cultura (1976-78) e, a partir de 1979, deputada independente, primeiro nas listas do PPD/PSD, depois nas do PRD.

Casou quatro vezes, mas o grande amor da sua vida foi um primo, José António Correia. A correspondência amorosa de ambos, por enquanto inédita, é do melhor que existe em língua portuguesa, garante quem leu.

Como editora da Arcádia, deslocou-se a Bissau para receber de Spínola o manuscrito de «Portugal e o Futuro». Natália telefonou ao general directamente do Botequim, o bar do Largo da Graça que abrira em 1971 com Isabel Meyrelles.

A sua casa da Rua Rodrigues Sampaio, onde sofreu o ataque cardíaco que a vitimou, acolheu o mais famoso salão literário de Lisboa. Por ali passou quase toda a gente que conta na vida cultural portuguesa. Entre estrangeiros, destaco Ionesco, Sartre, Michaux, Ievtuchenko, Graham Greene, Claude Roi e Henry Miller, mas foram mais. Sophia de Mello Breyner Andresen também por lá andou, e terá começado ali o atrito entre ambas.

Em 1969, a convite de Mário Soares, fez parte do núcleo fundador da CEUD. Opositora do Estado Novo, inimiga jurada de Salazar, opôs-se violentamente ao PREC. Embora as reuniões decisivas se realizassem noutro local, era no Botequim que os estrategas (como Melo Antunes e Vítor Alves) do 25 de Novembro se encontravam. Ao piano, Maria Paula levava a sala ao rubro com canções anti-gonçalvistas. Francisco Sá Carneiro, Snu Abecassis e Helena Roseta eram habitués.

O poema desta semana pertence ao livro A Mosca Iluminada (1972). A imagem foi obtida a partir do 1.º volume de O Sol nas Noites e o Luar nos Dias, obra poética completa publicada em 1993 pelo Círculo de Leitores no mês em que a autora faleceu. Tinha 69 anos e deixou viúvo Dórdio Guimarães.

[Antes deste, foram publicados poemas de Rui Knopfli, Luiza Neto Jorge e Mário Cesariny.]