quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

MARÍAS & JONES


Hoje na Sábado escrevo sobre Berta Isla, o romance mais recente do espanhol Javier Marías (n. 1951). Trata-se de um thriller de espionagem que recupera Peter Wheeler, um dos personagens da trilogia O Teu Rosto Amanhã. O protagonista, Tom Nevinson, podia ser o alter-ego do autor, pois ambos, em determinado momento das suas vidas, trocaram Espanha por Oxford, pautando o dia a dia por idiossincrasias britânicas. Como em obras anteriores, a acção de Berta Isla — o nome da mulher de Tom — desenrola-se tendo a História europeia como pano de fundo. Desta vez, o leitor acompanha a turbulência de 1968 (o Maio francês, a ocupação de Praga pelos tanques do Pacto de Varsóvia) e o colapso da URSS em 1991, depois de passar pela guerrilha do Ulster, a guerra das Malvinas e a queda do Muro de Berlim. Sem esquecer a ditadura franquista, pretexto para Marías lembrar os ominosos tempos do caudilho, em especial os métodos de actuação das polícias espanholas. Em Oxford, Tom, cujos dotes de linguista e de mimo eram reconhecidos, vê-se compelido a ser espião ao serviço do MI6. Filho de pai inglês e mãe espanhola, reunia as condições «para ser útil ao país e o servir com as suas capacidades excepcionais.» Tom recusa a sugestão de Wheeler, mas um episódio macabro (uma mulher com quem fez sexo aparece estrangulada) coloca-o entre duas escolhas: acusação de assassinato ou tornar-se infiltrado com base em Madrid. A originalidade da intriga radica no facto de cruzar os incidentes da vida conjugal com os segredos da profissão. Por exemplo, Berta não sabe por que razão foi um dia atacada por um casal de activistas do IRA. O que queriam com ela os irlandeses? Embora se trate de um thriller, um dos aspectos mais interessantes e melhor resolvidos relaciona-se com a solidão de Berta (o meu marido é o meu marido?, interrogava-se), que foi mantendo breves casos extra-conjugais, mas durante vinte anos não desistiu de ver Tom de regresso a casa. Oportunas citações de Shakespeare (o contraponto de Thatcher com Henrique V em Agincourt, em 1415, é um achado) e T.S. Eliot, pontuam a narrativa. Cinco estrelas. Publicou a Alfaguara.

Escrevo ainda sobre Aquilo Que Encontrei na Praia, romance do escritor galês Cynan Jones (n. 1975). A vida dos que vivem no limite da sobrevivência é o tema central. Podia ser um thriller policial, na medida em que tudo começa com a descoberta do corpo de um homem com «um buraco na cara, um túnel até à nuca», homem a quem faltavam quase todos os dedos de uma das mãos. O livro foi publicado em 2011, no auge da crise europeia. No centro da intriga, Grzegorz, imigrante polaco, e Hold, um pescador. Tráfico de droga, chantagem, contabilidade paralela, expedientes que põem em risco o visto de Grzegorz, pretextos para Cynan Jones falar dos efeitos da desregulação do mercado, dos monopólios da cadeia alimentar e da globalização. Não é inocente que Grzegorz seja polaco: quando os britânicos se queixam dos estrangeiros que hoje em dia ocupam a generalidade das profissões pouco qualificadas, estão a pensar em polacos. Grzegorz lê o grafito todos os dias: «Polacos fora». Mas o medo é o que «mantém as pessoas na linha». Três estrelas. Publicou a Elsinore.