quinta-feira, 25 de outubro de 2018

HOLLINGHURST & LYNCH


Hoje na Sábado escrevo sobre O Caso Sparsholt, do inglês Alan Hollinghurst (n. 1954), que em trinta anos publicou seis romances. O melhor continua a ser o primeiro. O mais recente acaba de ser traduzido: as quinhentas páginas do costume, o nível semântico a que o autor nos habituou, quotidiano homossexual em registo upper class, transgressão moderada, ambientes sofisticados, códigos de casta e, claro, dezenas de personagens. A fórmula não falha. Dividido em cinco capítulos, o livro cobre várias décadas. O título remete para um escândalo fictício, envolvendo David Sparsholt, o pai do protagonista. Tudo começa em Oxford durante o Blitz de 1940. David era um rapaz muito atraente à beira de completar dezoito anos e de ingressar na Royal Air Force. Freddie Green narra essa primeira parte: «havia uma vontade de sublimar e enobrecer o corpo de Sparsholt para lá da realidade, já de si sublime.» O intróito contextualiza a narrativa. Nascido em 1952, Johnny é filho daquele mesmo David que electrizara o college. Retratista e restaurador de antiguidades, o seu percurso ilustra a evolução de costumes na Inglaterra. Após anos de sexo clandestino, tal como seu pai, gozou a libertação: clubes gays, aplicativos móveis para encontros de natureza sexual (como o Grindr), casamento com outro homem, uma filha gerada por doação de esperma a uma amiga lésbica. Hollinghurst regista o ar do tempo com sentido pedagógico. É deveras interessante a forma como transpõe para a vida de Johnny o quotidiano dos amigos que o pai fizera em Oxford. Omite a sida porque foi assunto foi tratado em romance anterior. Londres substitui Oxford, mas o universo social mantém-se: artistas e escritores oriundos da boa sociedade. Após a morte do marido (vítima de cancro da próstata), Johnny aceita retratar, ao jeito de conversation piece, a família de Bella Miserden, uma «loura pragmática» que conhecera por acaso na National Portrait Gallery. Os Miserdens eram novos-ricos ligados à multimédia, o tipo de gente que Johnny não frequentava. Atento às nuances comportamentais, Hollinghurst sugere nexo de causalidade entre a fase depressiva e a aceitação do trabalho. David praticamente desaparece do plot. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre Espaço Para Sonhar, a biografia de David Lynch (n. 1946) escrita por Kristine Mackenna e pelo biografado. A edição portuguesa descobriu o filão biográfico. Ainda bem. Ela redigiu a biografia, ele acrescentou-lhe páginas de memórias. A solução não é comum, mas resultou. Obra a quatro mãos, portanto. Além de cineasta, Lynch também é actor, músico, pintor, fotógrafo, designer de móveis e autor de um livro sobre meditação transcendental que expõe o modo como aprendeu a controlar a sua própria violência. Ou seja, o mais próximo que hoje encontramos de um homem da Renascença. Para melhor compor o retrato, Kristine Mackenna fez mais de cem entrevistas com actores, agentes, amigos, antigas mulheres (Lynch casou quatro vezes), familiares, músicos e colaboradores. O mais interessante são as revelações sobre o móbil de certos filmes. Por exemplo, Lost Highway não existiria sem o caso O.J. Simpson. O fascínio por sangue é um item revelador. O volume inclui dezenas de fotografias, filmografia, cronologia de exposições, bibliografia, notas, e o indispensável índice remissivo. Uma edição cuidada. Quatro estrelas. Publicou a Elsinore.