quinta-feira, 1 de março de 2018

LISBOA & NORTON


Hoje na Sábado escrevo sobre Acta Est Fabula: Epílogo, último volume das memórias de Eugénio Lisboa (n. 1930). Após cinco volumes que cobrem o período que vai de 1930 a 2015, Epílogo é uma homenagem a Maria Antonieta, a companheira de sempre — «Aconteceu o inconcebível: partires, deixares-me sem ti» —, falecida no Verão de 2016. Nem podia ser de outro modo: «Publicar um livro de memórias que ignorasse este acontecimento, como se nada se tivesse passado, pareceu-me inconcebível e quase afrontoso.» Numa prosa sem qualquer espécie de delíquio, Eugénio Lisboa reconstrói a perda excruciante. Páginas admiráveis. Na página 37 começa o diário de dois anos decisivos da vida de Eugénio Lisboa. As entradas, que vão de Agosto de 2015 a Julho de 2017, permitem acompanhar (nos primeiros 12 meses ainda na companhia de Maria Antonieta) com minúcia as memórias, a rotina, as leituras e as ‘embirrações literárias’ do autor, sem esquecer o sulfuroso ponto de vista sobre política nacional e internacional, a gata Ísis, a filha mais velha, as netas, os amigos. Vários poemas intercalam o texto. Os momentos difíceis, que foram quase todos os deste período, matizam o tradicional sarcasmo: «Leio e escrevo como quem se droga, para esquecer. Mas o problema é que não quero esquecer.» Contudo, sobra espaço para o desacerto com o gosto de muitos: «Um senhor Gonçalo M. Tavares, que toda a gente lambusa, tontamente, escreve romances alemães, com gente alemã. Só há um inconveniente: é que ele é português.» A cena literária é comentada com acidez por quem nunca escreveu para alinhar com a Academia (a que pertence!) ou seduzir os novos, o que explica o enfado com os bonzos mediáticos e a iliteracia de muitos agentes culturais. Ensaísta heterodoxo, Eugénio Lisboa teve uma vida preenchida: em Moçambique foi gestor de uma petrolífera (mais tarde, em Paris, director mundial Compagnie Française de Pétroles) e professor de Literatura, docência prolongada nas universidades de Pretória e Estocolmo, depois, durante dezassete anos, conselheiro cultural na embaixada de Portugal em Londres (1978-95), presidente da Comissão Nacional da Unesco e, por fim, catedrático visitante em Aveiro. Cinco estrelas. Publicou a Opera Omnia.

Escrevo ainda sobre A Vida é um Tango, de Cristina Norton (n. 1948). Depois de publicar meia dúzia de romances, a autora deu agora à estampa este interessante livro de contos. A paleta de temas é muito variada. Há contos sobre as sequelas da ditadura militar argentina, como acontece com A Mãe da Plaza de Mayo, sobre um triângulo amoroso entre duas irmãs e o marido da mais velha, sobre uma pintora alcoólica, sobre uma empregada doméstica com fétiche por fardas de soldados («as botas engraxadas e o cheiro a caserna transportavam-na ao sétimo céu num abrir e fechar de pernas»), etc. A vida de Frida Kahlo e, em particular, a amputação da sua perna direita, dá azo a uma bela evocação, mas não propriamente a um conto. Por outro lado, O bambolear de Adélia, se desenvolvido, poderia dar lugar a uma novela. É o conto melhor estruturado do conjunto. Buenos Aires e Paris servem de cenário a várias histórias, mas isso não constitui surpresa: a autora nasceu na primeira e estudou na segunda. Cristina Norton tem uma escrita que recupera o ar do tempo de forma hábil. Quatro estrelas. Publicou a Oficina do Livro.