quinta-feira, 22 de março de 2018

ARAMBURU & TORRES


Hoje na Sábado escrevo sobre Pátria, do espanhol Fernando Aramburu (n. 1959). Com apenas dois livros traduzidos entre nós, o autor regressa com este romance várias vezes premiado, com enfoque no período mais turbulento do independentismo basco. A trama gira em torno das sequelas da execução de um empresário de nome Txato. Estamos no auge da vaga de assassinatos perpetrados pela esquerda abertzale. Dito de outro modo, no centro do terror euskadi, tema recorrente na obra de Aramburu. A partir de uma vila imaginária da província basca de Guipúzcoa, acompanhamos as reacções das vítimas do independentismo. Em 2011, quando a ETA pôs fim à luta armada, Bittori, a mulher de Txato, vai à campa do marido falar com ele. Inibida de esquecer, vê-se obrigada (como outros sobreviventes) a coexistir com os algozes. É tarde quando Jose Mari lhe confessa o crime. Não está sozinha. Como ela, outras viúvas, pais, filhos, irmãos, amantes, amigos. Vidas destruídas pela intolerância de uma quadrilha de ‘iluminados’. Pátria é um fresco de três décadas de ódio e trapaças. Aramburu não ficou pelo panfleto, antes compôs uma epopeia onde se cruzam vozes e tensões, nada tem carácter definitivo, e as certezas são poucas. Num estilo sóbrio, a escrita mantém o ritmo adequado à narrativa. Sem ênfase, ou frases de grande efeito, o romance vai fundo no escalpe da realidade. A densidade psicológica das personagens resgata-o da tentação do proselitismo. O facto de viver em Hanôver, na Alemanha, e só ter começado a publicar (excepto os dois primeiros livros de poesia) depois de sair de Espanha, fez de Aramburu um outsider. Isso talvez explique a desatenção dos editores portugueses face a um obra que vai já em oito romances, quatro colectâneas de contos, cinco livros de poesia, quatro de narrativa infantil e um volume de ensaios que, a partir da exegese de terceiros, pode ler-se como autobiografia do autor. Logo ele, que alguma crítica tem comparado a Camus. O volume inclui glossário de termos euskera, que são muitos, causando, aqui e ali, empecilho de leitura. Em nota de rodapé seriam provavelmente mais eficazes. Cinco estrelas. Publicou a Dom Quixote.

Escrevo ainda sobre A Glória e seu Cortejo de Horrores, da brasileira Fernanda Torres (n. 1965). Actriz e colunista na imprensa, a autora publicou mais um livro de ficção. Trata-se de uma farsa sobre o milieu teatral, com envios retrospectivos à militância de esquerda, ao Cinema Novo, ao «hedonismo lascivo, ébrio, estonteante» provocado pela amnistia de 1979 (era a ditadura militar), mas, sobretudo, ao tempo em que a televisão era o epicentro do Brasil. Mario Cardoso, o protagonista, é um actor de meia-idade, outrora um ídolo de novelas, que, na pior fase da sua vida, decide fazer Shakespeare. Pornochanchada e guerrilha cruzam-se com a degradação do Rio de Janeiro: «No emaranhado de barracos sem água e esgoto […] as AK 47s proliferam, traficadas junto com os papelotes de pó.» Por vezes, o humor tem eficácia, como na cena do filme porno: «Corria nua por uma praia deserta, rolando sôfrega na areia, como um bife à milanesa acometido de depressão.» Como se fora um roman à clef, a narrativa está pontuada de indirectas sobre actores, encenadores e críticos de teatro, ou seja, matéria obscura para quem não conheça o teatro brasileiro. Duas estrelas. Publicado pela Companhia das Letras.