quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

KAPUSCINSKI & SMITH


Hoje na Sábado escrevo sobre Ébano, do jornalista e escritor polaco Ryszard Kapuscinski (1932-2007), várias vezes foi apontado para o Nobel. A conjuntura política internacional é favorável à publicação de obras de índole jornalística, o que talvez explique a “redescoberta” de Kapuscinski, que viveu muitos anos em África. Os portugueses devem-lhe uma das obras centrais sobre a descolonização de Angola. Kapuscinski não foi apenas um jornalista competente, é um autor no mais amplo sentido da palavra. Ébano, agora reeditado, colige trinta textos escritos a partir das suas experiências ao longo de quarenta anos, em países como o Gana, Mauritânia, Tanzânia (incluindo Zanzibar), Uganda, Quénia, Nigéria, Etiópia, Ruanda, Libéria, Sudão, Senegal, Eritreia, etc. Como sempre, a escrita flui com naturalidade, misto de reportagem e diário de viagem, um livro sobre «algumas pessoas de lá, sobre os encontros que tive com elas, o tempo que passámos juntos.» É deveras curiosa a afirmação de que África só existe «como conceito geográfico», tal a multiplicidade de culturas, hábitos e costumes. «Toda a civilização técnica do século XIX foi levada para o interior à cabeça dos seus habitantes...», é um bom exemplo das sínteses, literariamente bem conseguidas e factualmente exactas, com que o autor pontua o livro. O mesmo não se pode dizer do tom paternalista de certas passagens. Por exemplo, a independência do Tanganica (1961), actual Tanzânia, é relatada com humor não isento de bílis anti-colonial. Execrar o colonialismo é uma atitude sensata que dispensa a caricatura da realidade. É um disparate afirmar que «um simples funcionário dos correios de Manchester» recebesse, ao chegar ao Tanganica, casa com piscina, jardim, carros e criados. É provável que isso acontecesse com um juiz transferido directamente de Old Bailey (Londres) para Dar-es-Salaam, mas nunca com um funcionário subalterno. Kapuscinski não resiste ao clichê dos colonos doublé de nababos, como aliás já tinha ensaiado em Mais um Dia de Vida, o livro sobre Angola. Traduzido a partir da edição alemã, o livro teria ganho em manter o título Febre Africana, mais assertivo que Ébano, o título original. A metáfora (infeliz) não ilude o acto falhado. Três estrelas. Publicou a Livros do Brasil.

Escrevo ainda sobre Como Ser Uma e Outra, da escocesa Ali Smith (n. 1962). Com duas colectâneas de contos e seis romances publicados no nosso país, a autora dispensa apresentações. Verdade que o teatro permanece inédito, mas lá chegaremos. Activista LGBT, Ali Smith é uma das vozes mais eloquentes da ficção britânica dos últimos vinte anos. Acabado de traduzir, Como Ser Uma e Outra é um romance com romance dentro. Se quisermos, até são duas novelas intercaladas. Quem conduz a história é George, uma rapariga de 16 anos que vive em Cambridge e tem de lutar com os fantasmas suscitados pela morte súbita da mãe, uma militante de Esquerda ‘sinalizada’ pelos serviços secretos. A história ganha espessura à medida que outra rapariga (uma projecção das fantasias de George) assume a persona do pintor renascentista Francesco del Cossa, autor dos frescos do Palazzo Schifanoia, de Ferrara. A androginia de Cossa remete para questões identitárias, tema central da obra de Ali Smith. A precisão dos detalhes sobre a vida e obra do pintor intrometido no plot são indeclináveis. Universo ficcional? Com certeza. O alto conseguimento da prosa serve de apoio a uma narrativa nem sempre linear. Quatro estrelas. Publicou a Elsinore.