quinta-feira, 6 de julho de 2017

MORRIS & STEINER


Hoje na Sábado escrevo sobre Conundrum, de Jan Morris (n. 1926). Em 1974, quando o livro chegou às livrarias, não era apenas mais um. Nessa data, a autora tinha quinze livros publicados como James Morris, ou seja, como homem e historiador, oficial dos Lanceiros da Rainha durante a Segunda Guerra Mundial, marido de Elizabeth Tuckniss, mãe dos seus cinco filhos. O primeiro volume da trilogia Pax Britannica faz parte da fase masculina. Com Enigma, a História de Uma Mudança de Sexo, nascia Jan Morris, reconhecida como um dos autores britânicos mais importantes do pós-guerra. A primeira frase é eloquente: «Tinha três anos, talvez quatro, quando me dei conta de que nascera no corpo errado, de que deveria ter nascido rapariga.» Não se julgue, porém, que a narrativa prossegue neste tom neutro. Pelo contrário. Jan Morris tem uma escrita elegíaca que transporta o leitor aos anos despreocupados da infância, ao coro do colégio de Oxford, à descoberta do prazer e, mais tarde, às idiossincrasias do serviço militar, época vertida em páginas admiráveis. O mesmo se diga da descrição das primeiras experiências sexuais (com outros rapazes do colégio), um prodígio de contenção que nenhuma vulgaridade belisca. Simples virtuosismo. A autora não faz proselitismo nem se limita a descrever factos. Enigma é uma elegante reflexão sobre a natureza e as consequências do «conflito que [a] dilacerava». A mudança de sexo surge enquadrada por práticas de povos tão remotos como os índios mohaves, os esquimós tchuktches ou os sarombavy de Madagáscar. O caso do pintor dinamarquês Einar Wegener/Lili Elbe introduz a questão cirúrgica. A vida de escritor e repórter, bem como o casamento ‘aberto’ com Elizabeth, estabelecem um hiato até ao encontro, em Nova Iorque, com Harry Benjamin, o endocrinologista que primeiro estudou a transexualidade. A primeira e decisiva cirurgia, feita em Casablanca, em 1972 (seguiram-se outras duas em Inglaterra), vem detalhada com minúcia. Começava aí o resto da vida dela. Este livro foi publicado em Portugal em 1975, com o título Conundrum, o Enigma, mas a actual edição corresponde à versão emendada («somente meia dúzia de palavras») pela autora em 2001. Cinco estrelas. Publicou a Tinta da China.

Escrevo ainda sobre George Steiner em The New Yorker, a colectânea que colige 28 dos mais de 150 artigos que Steiner (n. 1929) publicou na revista New Yorker durante 30 anos (1967-97). Se pensarmos num pensador de índole renascentista, o nome que nos ocorre de imediato é o do autor, porventura o último sobrevivente da categoria. Com grande parte da obra traduzida no nosso país, chegou agora às livrarias este novo volume de ensaios. Na introdução que fez para o volume, Robert Boyers sublinha o «sentido de missão pedagógica e força bruta de inteligência crítica» de Steiner. É vasto o espectro de temas e autores. Dividido em quatro partes, o livro inclui um extenso ensaio sobre Anthony Blunt, O Sacerdote da Traição. Blunt, que foi um eminente crítico e historiador de Arte, além de curador da colecção da família real, foi também espião soviético, membro do Cambridge Five, até ser acusado em 1979. Steiner corrobora o ponto de vista de que a versão pública do caso «é, em muitos aspectos, forjada» para proteger interesses mais altos. Soljenítsin, Orwell, Céline, Borges, Chomsky e Brecht, entre outros, são objecto de estudos de largo fôlego. O brilhantismo da escrita é de regra. Cinco estrelas. Publicou a Relógio d’Água.