quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

ANNE TYLER


Hoje na Sábado escrevo sobre O Carrinho de Linha Azul, de Anne Tyler (n. 1941), que com este romance regressa à edição portuguesa, de que andou afastada bastante tempo, sem que se perceba porquê, na medida em que vários dos seus livros, entre eles Jantar no Restaurante da Saudade (1982) ou O Turista Acidental (1985), foram grandes sucessos. O segundo até deu origem a um filme famoso de Lawrence Kasdan. Ficcionista laureada com o Pulitzer e com o prémio do National Book Critics Circle, Anne Tyler é autora de mais de vinte romances, dezenas de contos e dois livros para a infância. A crítica ortodoxa tende a ser condescendente com o imaginário clean dos seus livros, mas estamos longe da literatura de aeroporto. Verdade que Anne Tyler não é Alice Munro ou Joyce Carol Oates, mas estamos a falar de alguém com uma obra consistente sobre a vida de pessoas comuns, alheadas de melodramas operáticos ou atritos disfuncionais, num quadro de classe média convencional. O Carrinho de Linha Azul começa numa noite de Julho de 1994, no exacto momento em que um pai ouve um dos filhos dizer-lhe, sem rodeios e por telefone, que é homossexual. Mas o rapaz desliga assim que acaba de dizer o que queria, deixando pai e mãe incapazes de avaliar a situação. Confissão? Brincadeira de mau gosto? Afinal, Denny, nessa altura com dezanove anos, já tinha engravidado uma rapariga do liceu. E, ao contrário do irmão mais novo, Stem, respeitador das regras básicas de sociabilidade, Denny era ou pretendia ser um outsider, vivendo à margem do núcleo familiar. Naquela noite o seu paradeiro era desconhecido. Podia estar ali, em Baltimore, como no outro extremo do país. Com recurso a flashbacks e pertinentes notas de humor, a autora descreve o quotidiano de uma família-padrão, neste caso os Whitshank, ao longo de várias gerações. O ponto de partida é a personalidade desconcertante de Denny, por oposição à dos outros filhos, em especial Stem, mas o espectro analítico tem um âmbito mais alargado. Anne Tyler não ignora nenhum detalhe, por mais prosaico que seja. Digamos que O Carrinho de Linha Azul é uma dissertação, bem calibrada, dos sobressaltos da vida conjugal.Três estrelas e meia. Publicou a Presença.

Escrevo ainda sobre O Segredo da Modelo Perdida, de Eduardo Mendoza (n. 1943). São às dezenas os autores de thrillers cuja identidade se confunde com a das suas personagens. Exemplo clássico: falamos de Poirot como se Agatha Christie não existisse. Os casos multiplicam-se. Com Mendoza é ao contrário. O escritor catalão criou um detective anónimo, sendo O Segredo da Modelo Perdida o quinto (e mais recente) volume da série a que dá corpo. O seu detective tem outra particularidade: cabeleireiro oriundo do bas-fond, nem por isso deixa de questionar a situação europeia, como também fez no volume anterior, O Enredo da Bolsa e da Vida. Trata-se agora de recuperar um caso onde esteve envolvido há vinte anos. Um dos aspectos mais interessantes das suas narrativas radica nas tradições catalãs e, em concreto, na história de Barcelona, subtexto decisivo da trama geral. Constantes: ritmo vertiginoso, nonsense, saltos no tempo (notórios entre a primeira e a segunda parte do livro) e uso sagaz da ironia: «Faz tonificação, jacúzi, massagem e raios UV. Mas não me parece que seja gay.» O leitor não terá dificuldade em relacionar as manobras da APALF, sociedade secreta, com as consequências da deriva independentista da Catalunha. Três estrelas e meia. Publicou a Sextante.