quinta-feira, 14 de abril de 2016

ROSEMARY SULLIVAN


Hoje na Sábado escrevo sobre três livros: a biografia de Svetlana Alliluyeva, filha de Estaline, escrita por Rosemary Sullivan; o terceiro volume da saga A Minha Luta, de Karl Ove Knausgard; e o romance mais recente de Amos Oz.

No auge da Guerra Fria, a imprensa internacional deu a notícia entre todas improvável: a filha de Estaline tinha desertado para o Ocidente. Com efeito, na tarde de 6 de Março de 1967, Svetlana Alliluyeva (1926-2011) pediu asilo político na embaixada americana em Nova Deli, provocando embaraço em Washington e ondas de choque em Moscovo. As autoridades soviéticas exigiram o imediato repatriamento da desertora. Svetlana deslocara-se à Índia para lançar ao Ganges as cinzas de Brajesh Singh, o brâmane que fora seu companheiro mas com quem não fora autorizada a casar. A viagem deu oportunidade à fuga. Um facto de consequências imprevisíveis, no ano do cinquentenário da Revolução de Outubro. Escrita pela canadiana Rosemary Sullivan, a mais recente biografia de Svetlana, A Filha de Estaline, é de uma precisão admirável. Dividida em quatro partes e trinta e seis capítulos, não deixa nada de fora. Sob o pano de fundo do Grande Terror, seguimos uma vida desde o nascimento: os anos do Kremlin, o suicídio da mãe, a Casa do Aterro, as ignomínias da campanha anticosmopolita, a revelação pública dos crimes de Estaline feita por Krutchev no XX Congresso do Partido, a boémia artística e intelectual em Moscovo na Era do Degelo, a turbulenta vida amorosa de Svetlana, os escritores dissidentes (entre outros, Pasternak, Grossman e Soljenítsine), a deserção, o casamento com o arquitecto Wesley Peters, a filha “americana”, os anos de Londres, o colapso da URSS e, naturalmente, a controvérsia em torno de Vinte Cartas a Um Amigo, o livro que lhe abriu as portas da América, criando a lenda da mulher que se vendera por um milhão e meio de dólares, o astronómico avanço pago pelos direitos autorais. Bem documentada, a biógrafa traça com minúcia o retrato de alguém que foi toda a vida uma pessoa acossada, caluniada por quase todos, desenraizada dentro e fora da Rússia. Além das árvores genealógicas das famílias Djugashvili (Estaline) e Alliluyev, o volume inclui perfis breves das personagens citadas, índice remissivo, dezenas de fotografias, bem como notas e fontes biobibliográficas. Quatro estrelas e meia.

Com A Ilha da Infância, o leitor português fica a dispor da tradução de metade da saga autobiográfica A Minha Luta, do norueguês Karl Ove Knausgard (n. 1968). Tal como o anterior, este terceiro volume foi traduzido a partir da edição inglesa de Don Bartlett. Só o primeiro foi traduzido directamente do norueguês. A crueza narrativa fez de Knausgard um autor de culto na Escandinávia, facto que desmente o mito da abertura de costumes dos povos nórdicos. Dezenas de autores europeus e americanos têm assinado obras com relatos de experiências pessoais em discurso directo, cujo teor de corrosão faz de Knausgard pouco mais que irreverente. Não estão em causa os seus méritos literários. Mas não bate certo com a ênfase colada ao “lado negro” da Obra, salvo se (mas isso é um problema dos escandinavos) dermos importância às regras puritanas da Lei de Jante e, nessa medida, talvez se possa falar em transgressão. Sem perder de vista a tradição literária, Knausgard expõe a vida em família num corpo a corpo entre Proust e Houellebecq. Receita infalível para garantir sucesso. Quatro estrelas. Publicou a Relógio d’Água.

A obra mais recente de Amos Oz (n. 1939), o israelita que não pára de surpreender-nos, põe em pauta a questão palestiniana a partir da controvérsia em torno da figura de Judas Iscariotes. O título não é inocente — Judas. Apostando na tese de que o apóstolo não seria o traidor que a posteridade fixou, o autor disseca o presente à luz dos equívocos do passado. Podemos argumentar, sem especial originalidade, que lá onde lemos “Judas” poderia estar Amos Oz. Dito de outro modo: todo o julgamento moral é fruto do arbítrio. Sendo conhecida a dissensão do autor face à política expansionista de Israel (em particular na Faixa de Gaza e na Cisjordânia), o romance também pode ser lido como um ensaio sobre lealdade vs traição. Com acção centrada em 1959-60, em Jerusalém, Judas é um pretexto para iluminar o sionismo: «Idealista era Bem-Gurion, não Abravanel. Ben-Gurion e o rebanho que o seguiu como se ele fosse o flautista Hamelin. Para a matança. O massacre. A expulsão. Para o ódio eterno entre duas comunidades.» Aqui chegados, já o leitor percebeu onde entra o homem dos trinta dinheiros. Quatro estrelas. Publicou a Dom Quixote.