quinta-feira, 28 de abril de 2016

EIMEAR McBRIDE


Hoje na Sábado escrevo sobre Uma Rapariga É Uma Coisa Inacabada, de Eimear McBride. Já ouviu falar dela? É provável que não. Eimear nasceu na Inglaterra, mas é uma escritora irlandesa, autora de um único livro, acabado de traduzir. Nascida em Liverpool em 1976, tinha 3 anos quando acompanhou os pais no seu regresso à Irlanda. Aos 17 foi para Londres estudar teatro e agora vive em Norwich. Não foi fácil publicar o livro, que andou nove anos em bolandas de editor em editor. Enfim, nenhum deles podia adivinhar que o sucesso se traduziria em cinco prémios, e que a crítica mais exigente falasse de génio. Até a New York Review of Books trouxe Beckett à colação. Eimear mete no livro os fantasmas irlandeses: religião, sexo, culpa e disfunção. Mais a exposição dos interditos (Catherine Millet mora aqui?) que faz de Uma Rapariga É Uma Coisa Inacabada o avesso do romance de formação. Do seu modelo clássico, quero dizer. A transgressão é de regra: «Oferecem-se e ficam desconcertados pelo meu não de dizer não. Dizer sim é o melhor dos poderes.» O comportamento da narradora é determinado pela doença (um tumor no cérebro) do irmão e pelos abusos do tio que a violentou. O “tu” para quem as falas remetem é esse irmão que transforma a Parte V numa catarse: «Até ele feliz de fodido me meter por mim acima.» A peculiaridade da sintaxe é uma marca forte do livro. Um exemplo entre dezenas: «Abro os joelhos disse anda lá. Quase se morreu de susto. […] Baixa as calças. Só para lhe tocar na pila tremente. […] Aqui a lida lida e puxo a saia e sacudo casca. Afasto-me mais calma agora do que que.» Tal como os heterodoxos nexos gramaticais, a repetição e/ou junção de palavras não constituem gralhas. São simplesmente a prosódia da autora, herdeira de Edna O’Brien e, por que não?, de Joyce. Não espanta que tudo isto seja resultado do imparável fluxo de consciência. A tradução é da responsabilidade de um poeta (Daniel Jonas), e faz sentido que seja assim. Este livro não é para amanuenses. Cinco estrelas.

Escrevo ainda sobre Vamos Comprar um Poeta, de Afonso Cruz (n. 1971), um dos autores mais cultos da sua geração, várias vezes premiado, autor de romances, contos, livros para a infância, etc. Cruz acaba de dar à estampa um livrinho de micro-contos aforísticos. Quem leu A Boneca de Kokoschka (2010), Jesus Cristo Bebia Cerveja (2012) ou Flores (2015), três obras de assinalável conseguimento, talvez se surpreenda com o tom menor destes textos paródicos, devedores de alguma tradição surrealista. Ironia e nonsense são de regra: «É sempre necessário serem um pouco subversivos ou a qualidade poética baixa demasiado e não gera lucro, ninguém compra, acabam preteridos a bailarinos ou hamsters.» Há aqui ecos remotos do José Sesinando [Palla e Carmo] de quem hoje quase ninguém se lembra, mas Afonso Cruz terá lido com proveito. Como também Ramón Gómez de la Serna, expressamente citado. Em mais de vinte títulos publicados, sobressai a recusa da naïveté que tem sido a imagem de marca dos mais promovidos dos seus pares geracionais. Não é pequeno mérito. É justamente esse patamar de exigência que Vamos Comprar um Poeta não corrobora. Três estrelas. Publicou a Caminho.